Transformação da
Audiência de Custódia:
Avanços,
Retrocessos e Riscos Constitucionais
A Lei nº 15.272/2025 introduziu mudanças substanciais no
Código de Processo Penal brasileiro, especificamente na disciplina das
audiências de custódia. Embora apresentada como um mecanismo de “modernização”
e “fortalecimento da segurança pública”, a alteração promove uma verdadeira
mudança de finalidade desse ato processual, deslocando-o de um procedimento de
garantia e controle de legalidade para um instrumento de aferição de
periculosidade e viabilidade de prisão preventiva, dentre outras.
A seguir, analiso de forma técnica, crítica e detalhada as
principais inovações, seus impactos e suas possíveis inconstitucionalidades,
dando um caminho a ser seguido por profissionais que militam na área criminal.
Finalidade
Original da Audiência de Custódia
Antes da Lei nº 15.272/2025, a audiência de custódia tinha
como núcleo essencial:
- Verificar
se a prisão era legal.
- Avaliar
se houve maus-tratos, abusos ou tortura.
- Decidir
sobre a manutenção da prisão, concessão de liberdade ou aplicação de
medidas cautelares.
- Garantir
que o preso fosse apresentado rapidamente à autoridade judicial (arts. 306
e 310 do CPP).
A prioridade era a proteção do indivíduo diante do poder
punitivo estatal, dando asas à críticas de vários setores da sociedade clamando
pelo fim das Audiências de Custódia. Muitos vídeos correram as redes sociais
mostrando Juízes oferecendo cafezinhos para custodiados presos, e isso com
forte influência das normas internacionais incluindo o Pacto de San José da
Costa Rica.
Com a nova lei, esse paradigma muda de forma profunda.
Principais
Alterações Introduzidas pela Lei nº 15.272/2025
Conversão da
prisão em flagrante: critérios de periculosidade
Agora, a conversão do flagrante em prisão preventiva passa a
ser condicionada ao que o legislador chamou de “indicadores objetivos de
periculosidade”. Entre eles:
- Histórico
de descumprimento de medidas cautelares, o que evita as críticas,
principalmente no meio policial, que se auto clamavam de “enxugadores” de
gelo, por prenderem um indivíduo e o mesmo sair da audiência antes deles
mesmos.
- Indícios
de risco de fuga;
- Participação
em organizações criminosas;
- Uso
de arma de fogo;
- Natureza
e circunstâncias do delito;
- “Conduta
social” e “histórico comportamental”.
O problema está na vagueza desses critérios. Termos como
“conduta social” e “histórico comportamental”, por exemplo, abrem espaço para
interpretações subjetivas, e consequentemente, discricionárias, isso para não
falar em risco de fuga, como um juiz, numa análise genérica e sem material apto
a mostrar-lhe a vida do indivíduo poderá avaliar o risco de fuga?.
Coleta de material
biológico (DNA)
A nova lei prevê, como rotina na audiência de custódia, a
coleta de material biológico de determinados custodiados para “fins de
identificação criminal ampliada”.
Aqui reside um dos pontos mais criticados:
- Viola
o princípio da não autoincriminação (nemo tenetur se detegere), só a
título de curiosidade, saindo da matéria, estamos vendo na CPMI do INSS
várias testemunhas munidas com “habeas corpus” não sendo obrigadas a responder
perguntas dos senhores deputados/senadores para não se auto incriminar.
- Não
estabelece protocolo: quem coleta? Em que condições? Com quais garantias?
- Transforma
o custodiado em fonte obrigatória de dados genéticos sem condenação ou
indicativo de uso proporcional.
Tal medida aproxima o sistema penal brasileiro de modelos de
vigilância genética massiva, incompatíveis com a presunção de inocência.
Ampliação do rigor
na audiência de custódia
A audiência deixa de focar predominante no tratamento
dispensado ao preso e passa a assumir caráter quase inquisitivo de prognóstico
de risco.
Esse deslocamento altera sua natureza jurídica e levanta
dúvidas sobre violação da finalidade constitucional desse ato processual.
Obrigatoriedade de
fundamentação mais detalhada
Este é o principal ponto positivo da lei. O juiz deve
apresentar motivos concretos e individualizados, deixando de lado decisões
padronizadas e genéricas, muito combatidas por profissionais do direito, tanto
advogados quanto defensores públicos. Muitas da vezes aquela decisão genérica “Aplicação
da lei penal”.
Na prática, isso reduz arbitrariedades e oferece material
robusto para eventual habeas corpus, recurso ou revisão.
Implicações
Práticas para a Atuação da Defesa
Aumento das
exigências probatórias
Para que o juiz decida pela liberdade ou por cautelar
diversa, a defesa deverá se preparar melhor e com mais rigor documental. Isso
inclui apresentar:
- Comprovação
de residência fixa;
- Vínculo
familiar;
- Histórico
de comparecimento a atos processuais em outras ações;
- Certidões
que demonstrem ausência de descumprimentos pretéritos;
- Provas
sobre inexistência de risco de fuga;
- Dados
profissionais (emprego, renda, vínculos comunitários).
Não que antes não necessitava apresentar certos documentos, principalmente
para embasar os pedidos de Liberdade Provisória, mas agora estar mais atentos à
peculiaridades da nova legislação. O ônus da defesa aumenta significativamente.
Como ficará nos
crimes de drogas
Nos casos de tráfico ou associação, historicamente marcados
por preconceitos judiciais, há risco de aplicação automática da periculosidade.
Contudo, a defesa pode e deve:
- Questionar
a falta de elementos concretos;
- Invocar
o entendimento majoritário da Jurisprudência que o simples fato de se
tratar de crime hediondo não impede, por si só, a concessão da liberdade
provisória, só se mostrando válido o provimento que esteja devidamente
fundamentado, nos termos do artigo 93, IX da Constituição Federal;
- Impugnar
presunções genéricas de organização criminosa;
- Exigir
demonstração formal do suposto risco de continuidade delitiva.
Questionamento da
coleta de DNA
A linha defensiva deverá explorar:
- Ausência
de regulamentação técnica;
- Inconstitucionalidade
por violar o direito ao silêncio e à não autoincriminação;
- Possível
constrangimento ilegal se houver força física para coleta;
- Ausência
de relação entre coleta genética e necessidade cautelar;
- Risco
de armazenamento indevido de dados sensíveis.
A Crítica Central:
Presunção de Inocência Ameaçada
A transformação da audiência de custódia em um momento de
“avaliação de periculosidade” aproxima o sistema penal brasileiro:
- de
modelos preventivos agressivos,
- menos
jurídicos e mais securitários,
- com
forte conotação moralizante sobre o indivíduo preso.
Ao exigir que o juiz avalie periculosidade de forma
acelerada, diante de alguém recém preso e sem acesso pleno ao contraditório,
cria-se ambiente fértil para decisões baseadas em estigmas.
A coleta compulsória de material biológico reforça esse
cenário, pois trata o custodiado como potencial culpado, não como
presumidamente inocente.
Pontos Positivos,
Apesar das Críticas
Nem tudo é retrocesso. Destacam-se:
- Fortalecimento
da fundamentação judicial;
- Maior
controle sobre decisões preventivas;
- Possibilidade
de padronização procedimental;
- Aumento
da transparência na análise dos requisitos do art. 312 do CPP.
Contudo, tais ganhos não compensam os riscos estruturais,
que exigem vigilância da defesa técnica e controle jurisdicional rigoroso.
Uma Lei que Reorienta a Audiência de Custódia e
Exige Resistência Técnica
A Lei nº 15.272/2025 inaugura uma nova fase da audiência de
custódia no Brasil. A mudança, entretanto, desloca o foco da proteção de
direitos para a avaliação de periculosidade, criando tensões constitucionais
significativas e ampliando o espaço para prisões preventivas.
Cabe à advocacia criminal, especialmente à defesa técnica
preparada, atuar com precisão argumentativa para:
- conter
abusos,
- exigir
legalidade procedimental,
- contestar
critérios subjetivos de periculosidade,
- questionar
a coleta genética indevida, e
- exigir
decisões fundamentadas e individualizadas.
O sistema acusatório agradece.
Usama Samara
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